Operação Apolo 11 - Ditadura, Memória Política e ponderações.
Pois é... tortura não se comemora... assassinatos, sequestros, estupros e outras tantas barbáries ocorridas durante o regime ditatorial também não. Dediquei três anos da minha vida à análise de requerimentos de perseguidos políticos no Brasil nos anos de chumbo. Integrar de alguma forma a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça era um sonho para quem trabalhava há 02 anos analisando os pagamentos de anistiados políticos no Ministério do Planejamento.
Lembro com muito carinho da primeira e de todas as sessões de julgamento de processos das quais tive o prazer de assistir e participar. No meu primeiro dia de trabalho, foi analisado o requerimento de anistia de Irles Coutinho de Carvalho, primeira esposa de Hebert de Souza. Eu já conhecia aquela história dos livros. Um tanto quanto capenga e incompleta, mas eu já tinha tido contato com aquelas informações. Ouvi-la da boca de Irles foi algo que me transformou. Irles e Betinho foram intensamente perseguidos no Brasil e por isso tiveram seu filho Daniel na clandestinidade em São Paulo. Daniel passou a infância trocando de endereço: Brasil, Chile, Suécia, Inglaterra... Daniel só teve direito de saber seu próprio nome aos 07 anos, quando já podia ter algum entendimento sobre a necessidade de manter este nome em sigilo, bem como a vida militante de seus pais. A ele também foi negado o direito de conviver com Betinho, que viveu clandestino no Brasil durante 6 anos e no exterior durante 08 anos. Irles lembrou muito emocionada cada momento e dificuldade atravessada por sua família em decorrência da perseguição política e de sua orientação contrária ao regime imposto. Naquele momento eu soube que não conseguiria manter distanciamento nenhum daquelas histórias de vida.
Este foi meu primeiro dia na Comissão de Anistia. Ao requerimento de Irles, seguiram-se centenas de histórias que pude analisar, ouvir, acompanhar, sentir... Um trabalho como o da Comissão de Anistia não nos permite sair ilesos. Eu também não saí ilesa deste processo de transição incompleto e um tanto quanto injusto. Não só com os perseguidos, mas também injusto com as Forças Armadas, com nossos jovens, com nossas crianças e com nosso Brasil. Por conta de alguns homens que mancharam a história do Brasil, até hoje os militares sérios, justos e de boa conduta sofrem preconceito dentro da sociedade e são tidos como os vilões permanentes de uma história que não foi passada a limpo. Até hoje, os direitos humanos de nossos policiais são esquecidos. São eles submetidos a torturas durante seus penosos "cursos de formação" e muitos reproduzem toda violência a que são submetidos em suas vidas profissionais. Nossos jovens e nossas crianças não conhecem a história de seu País até hoje. Nossos idosos e adultos também não.
Durante todo este tempo, convivemos com as maledicências da imprensa sobre o trabalho realizado pela Comissão de Anistia. Por vezes, as críticas tinham sim fundamento. Mas a maioria, se configurava em açoite a um trabalho difícil, sem elementos suficientes (cadê a abertura dos arquivos???) e incansável pela busca de uma memória histórica para o Brasil.
As histórias que mais me chamavam atenção era as dos infinitos requerimentos políticos de pessoas que foram perseguidas, presas, torturadas, sem ter qualquer envolvimento combativo na derrubada da ditadura. Elas não tinham o que contar aos seus algozes e por isso inventavam histórias que não existiam, esperando que a partir de suas invenções suas sessões de tortura terminassem. A que mais me chamou atenção foi a de João Suzuki. Conheci a história de João, dois meses antes de sair da Comissão de Anistia. Por acaso, eu estava em uma Caravana da Anistia em São Paulo e entrei em uma sessão de julgamento onde estava sendo analisado o requerimento de João. Ouvi parte do voto que concedia a anistia. Mas ouvi profundamente o silêncio, o tremor e o choro tímido e incontido de João Suzuki ao ter sua anistia concedida. Em conversa posterior com o relator do requerimento, fiquei muito intrigada ao descobrir que João havia sido preso por conta de uma tal Operação Apolo 11. Fiquei tão inquieta que, quando saí da Comissão de Anistia, resolvi pesquisar a história por conta própria, com a ajuda de três amigos e com o apoio do Alexandre Bernardino Costa - que se empolgaram a partir da minha ideia de fazer um documentário sobre a Apolo 11.
Relatos descrevem que em 1969, um publicitário sem envolvimento militante foi preso no Rio e, não suportando mais as torturas que questionavam a que organização pertencia, lembrou de um cartaz dentro do DOPS onde havia a foto do foguete Apolo 11. Aos questionamentos de seus algozes respondeu que pertencia a Organização Apolo 11. Não satisfeitos, os militares queriam os nomes dos envolvidos na Operação. O publicitário respondeu que os nomes estavam em sua agenda. O publicitário havia visitado uma exposição de Suzuki um mês antes. E assim, João Suzuki passou a fazer parte dos Arquivos Públicos do Departamento de Ordem Social de São Paulo.
Em 2010, viajei até São Paulo, mais especificamente Santo André, onde visitei João Suzuki em sua casa. João me recebeu com muita desconfiança. A casa dele chamava atenção. Era difícil entrar na casa pelo número de plantas. Do lado de fora, João plantou árvores grandes, de forma a impedir que alguém o visse (assim ele me justificou, pois a perseguição em sua cabeça ainda não tinha cessado). João tinha medo de me receber, por isso conversamos por muito tempo do lado de fora da casa. No pequeno quintal mais plantas... muitas plantas, esculturas inacabadas no meio delas, telas inutilizadas, e muita paz, da qual João nem sempre desfrutava.
Ao entrar, João me contou sobre o falecimento de sua esposa e sobre a falta que ela fazia em sua vida. Na sala (muito simples e pequenina), muitos quadros, telas, tinta e Bach na vitrola. João era um artista na mais profunda essência da palavra. Muito lúcido, mesmo diante de todo problema psiquiátrico enfrentado em decorrência das torturas no Tiradentes.
Ao conversamos, Suzuki relatou que, em 1969, ministrava aulas de artes plásticas num instituto próximo à Biblioteca Nacional e que ao redor da biblioteca havia muitos bares, onde se reuniam os universitários, os artistas, os professores e intelectuais da cidade. Lá funcionava a noite e a boemia paulista. Frequentando a noite, ficou amigo de um tal de Tuna (um baiano, filho de um juiz), de Alcides (que participou do seqüestro do embaixador americano), de Liberato (que também era artista plástico) e de Ana e Demerval (que eram casados). Todos estes, ele desconhecia o sobrenome e do Tuna sempre só soube o apelido. Disse que depois de muitos anos de sua soltura, ficou sabendo que eram militantes políticos e que o apartamento de Tuna, onde ele foi algumas vezes para tomar cerveja, era um aparelho.
Suzuki não participava de nenhuma organização. Também não pregava nenhum ideal socialista ou comunista. Suzuki era um jovem artista, que como todos os rapazes de sua idade gostava de amigos, de música, de arte, de uma cervejinha no fim da tarde.
Na época de sua prisão, João já morava na mesma casa em que o visitei. João havia saído para comprar pão com seu filho, quando foi preso na frente de sua casa. Seu filho foi arrancado de seus braços e dali foi levado à prisão.
Suzuki foi levado para o 3º Quartel. Lá queriam saber quem tinha jogado a bomba no Estadão. Todos os interrogatórios se resumiam a isso e ele não tinha nada pra falar. Assim, foi espancado e levado ao pau-de-arara algumas vezes. Conhecia muitos jornalistas e publicitários, muitos eram seus alunos ou seus clientes, mas não sabia nada sobre seu envolvimento com a militância.
Suzuki relatou que a pior tortura é a psicológica. Ele não sabia onde estava seu filho e sua esposa. Durante o tempo em que esteve preso, mais ou menos 15 dias, sofreu muitas alucinações. Disse que viu sua mulher ser fuzilada, seu irmão ser morto, que tinha alucinações freqüentes e que na sua cabeça é muito difícil distinguir realidade de alucinação e que isso se perdurava até então.
João não se lembrava de ter tomado banho na prisão. Lembrava que a comida era escassa e uma vez ao dia. Lembrava do excedente número de presos na mesma cela. Por vezes, o buraco onde defecavam entupia, e a partir daí era preciso fazer as necessidades no chão da cela. Lembrava que os agentes ligavam um barulho de motor insuportável e que passavam o dia ouvindo aquele barulho e que aquilo era uma tortura horrível.
Também contou que um dia ele acordou e os agentes haviam deixado muitas lâminas de barbear ao redor dele. Acreditava que queriam que ele se matasse.
Algumas pessoas já haviam lhe contado que ele tinha atitudes estranhas na cela, que por vezes ficou nu, que desenhava com fósforos e com casca de banana, que gritava muito e outras coisas que neste momento ele ainda não consegue falar, mas que ele não se recorda porque estava muito alucinado. Contei que alguns amigos, como o Alípio Freire tinham testemunhado o fato e ele agradeceu, porque não conseguia se lembrar de muitas coisas.
Pelas minhas pesquisas no Arquivo Público, João Suzuki foi apenas um dos que foi preso em decorrência da fantasiosa Apolo 11. A operação deflagrou mais de 20 prisões no Rio e em São Paulo, ao que tudo indica.
Não pude levar a pesquisa e o projeto à frente, por estar envolvida com outras questões e João Suzuki faleceu um pouco depois de minha visita. Esta foi a forma que encontrei de registrar minha memória para que um pouquinho desta história se preserve.
Aos que acreditam que a memória política só interessa à esquerda brasileira, que a responsabilização dos crimes comuns ocorridos durante a ditadura é revanchismo, que isso é passado e não interessa mais, eu pergunto: em que história estamos pautando o nosso futuro????
"Para que nunca se esqueça, para que nunca mais aconteça"
Com amor, em memória de João Suzuki e de todas as mulheres, de todos os homens, de todas as crianças que tiveram sua vida ceifada ou parte dela pelas atrocidades deflagradas nos anos de chumbo.
(Texto original publicado por mim em http://palavrapraquetequero.blogspot.com/2012/04/operacao-apolo-11-o-foguete-da-ditadura.html